domingo, 31 de maio de 2009

adeus, adeus meu rouxinol

querida,

O teu adeus era tão certo que quando bateu em minha porta o relato do teu último ato... Eu já sabia o que era. Não precisaria de mensagem alguma, bastava vê-la para saber que as malas sempre estiveram prontas - apenas o destino era dúvida. Quantos mares foi preciso desbravar para saber o porto de sua morada? Taí coisa que ninguém poderá medir, porque esta aventura da descoberta de si mesma é íntima a ponto de não ter nome. Alice, há algo que sempre quis saber a seu respeito e me dediquei a observá-la mais de perto na tentativa de desvendá-la... O teu segredo ainda não sei, mas sinto. E senti-la tem sido de alguma gravidade e convicção inquestionável: o momento singular entre o rufar dos tambores e o salto triplo mortal do acrobata. Maestro: dê-me a canção derradeira que hoje a noite é de gala... e Despedida.

Um abraço de desenho animado com braços elásticos do tamanho do mundo.
tumtum-tumtum-tumtum-tumtum!!!
Sabe, Alice, não imaginava andar tão só. Seu anúncio de despedida me pôs no olho de um furacão, onde tudo é vento e imobilidade. Não bastasse isso, os anos me colocaram à porta, todas as manhãs, garrafas de leite, pães frescos e o jornal diário. Poderia não as ter bebido, não os ter comido, jamais ter lido. Mas alimentaram meus dias, construiram minha história os periódicos; paguei por eles e minha obrigação é calar. Acontece que já não sou aquele e por isso me sinto estranhamente só. E agora, sua coragem (eu sei que há medo, mas sempre há, e o que fica é a história dos que seguiram, apesar dele) me coloca em xeque. Porque queria ser como você, apertar os olhos na direção do horizonte, escolher um pouso distante, abrir as asas e atirar-me no vazio (é alta a torre do farol). Minha vontade é tamanha, um querer sem fim corre nas minhas veias, mas corro sobre trilhos. Minha fornalha arde em possibilidades, minhas caldeiras encontram-se em seu limite, sou pura potência, mas a máquina está debreada... e quando move-se, só os trilhos. Então, estou sempre à margem das mesmas paisagens e ainda que leste ou oeste ofereçam paragens novas, diferentes climas, geografias sedutoras, desafiar os trilhos não posso, porque não sei. Além do mais, aquilo que verdadeiramente somos não pode ser aprendido. Senão, ah, quantas lições desse nosso convívio já teria eu incorporado! Já não haveria trilhos, nenhum medo capaz de frear o desejo de seguir, livre; não haveria nada além de nossas risadas, feitas de matéria alguma, feitas de nós mesmos e de nossa humanidade... e o vôo, verdadeiramente.
Tudo que posso dizer cabe nisto: quando pousar os seus olhos sobre as montanhas do outro lado do atlântico, quando puser na boca o sabor distante de outra terra, quando brincar as canções de muito longe e abrigar-se no abraço do seu homem, quando pousar os pés no chão de sua nova casa, algo seu vai estar aqui, sorrindo em mim, apesar da torre, dos trilhos ou da paisagem.

Vai brilhar, Alice!

sábado, 30 de maio de 2009

quase-resposta

Faroleiro,

Já há muito que eu mesma não sei de mim; me arrisquei numa aventura de palavras encantadas que prometiam incendiar minha vida morna... Mas há coisas que precisam mesmo ser ditas, não basta estarem cuidadosamente desenhadas nas entrelinhas. Eu, quando tive a chance, calei. E o que levei pra casa foi a lembrança de pequenas faíscas entre um olhar e outro, o lamento pela estranheza do abraço último – a prova inconteste de que entre aqueles dois corpos a se despedir na esquina não haveria entrega senão a minha. Pois temo nada ter a lhe oferecer agora... O amor veio e devorou tudo; inundou tudo; quebrou tudo. Nestes tempos de silêncio e noites frias, eu apenas poderia lhe narrar o que não houve e, ainda assim, duvido que minhas verdades inventadas lhe distrairiam a ponto de parar o tempo. Aliás, pare o tempo agora e talvez sobre algum fiapo de delicadeza da Bailarina que um dia eu fui.

É inverno aqui.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Bailarina,

Daqui, minha torre,
cumpro meu destino de mirar.
O horizonte oferece-se lânguido e fácil
mesmo quando é tarde ou chove muito.
Trabalho, há pouco. Apenas o de alimentar o fogo do farol, cuidar que jamais se apague
e pouco olhar para ele, pois hipnotiza
facilmente os mais desejosos de mais.
Então, fatalmente, resta-me o horizonte, além das cartas. Algumas vezes há gaivotas e fico a examiná-las por tanto tempo que é possível mergulhar a alma nelas e voar. Outras vezes, o movimento dos cardumes me põe a sorrir, porque resumem o mover de tudo e neles soa a orquestra silênciosa do devir. O trabalho é pouco mas grave. Pus-me aqui por escolha, não se trata de queixa. Apenas constato aquilo que foi e é o meu caminho desde a última curva. A solidão é algo com o que se acostuma, como uma dor que jamais cessa e nos ensina a sorrir apesar dela. Mas não é de gaivotas, cardumes ou trabalho. É das cartas que quero falar. Sinto tanta saudade de recebê-las que não é possível explicar. Lembro de uma que li de manhã bem cedo... a neblina ainda baixa esperava os primeiros raios de sol para desvanecer-se; o frio nas lâminas de vento a aparar-me os ossos... e de repente sua voz soprava em emus ouvidos e podia ver seus lábios se movendo, olhos aparafusados nos meus. Tudo cessava enquanto lia. O mundo punha-se a esperar por mim, solenemente, enquanto meu coração ragalava-se de alegrias em saber, ainda que você nunca tenha escrito, que, numa manhã ensolarada de sábado, você comprou sapatilhas novas e tomou chá no centro da cidade. Uma outra releio sempre... também fala em gaivotas. Mas voce tem o seu destino, o seu caminho, o seu passo. E, talvez, nele não caibam mais cartas... por enquanto.

Um beijo, saudades,

Faroleiro.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Despedida prévia

Meus queridos, vocês que sabem quem são,

As discussões de hoje transitaram por temas como dignidade, fuga, humor, literatura, desapego, amor, busca, encontros... Aproveito o espaço, o convite e a chance para escrever, receber e endereçar-lhes cartas. Cartas de novidades, de satisfação, de saudades, de queixa, de compartilhamento, de amor, de frustração. Cartas de amizade, de cobrança, de resgate e de despedidas. Cartas de despedidas. Estou sempre de saída e de chegada, com as portas dos fundos e da frente sempre abertas. Se isso é fuga ou decisão previamente tomada, agendada, com firma reconhecida e legalizada, é uma questão de referencial. Não tomo minhas despedidas como fuga. As interpreto como um momento dado a determinadas circunstâncias. Tolero bem as distâncias, mas não aprecio o momento da aproximação de uma despedida.

Quantas cartas minhas encontram-se perdidas em gavetas e armários pelo mundo? Quantas foram rasgadas ou queimadas? Quantas estão perdidas em páginas de livros lidos, semilidos ou esquecidos? Quantas viraram rascunho, marcador de texto, papel higiênico, verso de receita de bolo ou de páginas de recados? Quantas ainda são mantidas em segredo? Quantas ainda encontram-se lacradas? Quantas foram extraviadas e não chegaram ao seu destino? Quantas foram roubadas?

Só sei que escrevo cartas. Essa é minha única certeza. Escrevo cartas para desabafar, desatar nós, mostrar que lembrei ou avisar que pretendo esquecer. Escrevo cartas para treinar a caligrafia, para testar canetas, para fugir do vício do computador. Escrevo cartas mais para que me amem ou me odeiem e menos para que me esqueçam. Escrevo cartas com a esperança de ser protagonista de um grande achado daqui a meio século. Escrevo cartas para amansar o pensamento e desafogar o coração.
Por vezes, escrevo cartas para não enviá-las, apenas para me conformar por tê-las escrito. Escrevo cartas para descobrir até quanto eu gosto ou desgosto das coisas, até onde posso, até onde gozo ou sofro. Escrevo cartas para liberar minhas limitações, para conhecer e descobrir as pessoas e o mundo, para contar segredo e pedir sigilo.
Escrevo cartas para perdê-las.
E perdendo-as, esqueço que ao tê-las escrito posso ter chorado, posso ter sofrido, posso ter me entregado em demasia.
E encontrando-as, me lembro de passados, de histórias, de cenas inesquecíveis e de outras que, por precaução, evito rememorar.
Cartas, benditas ou malditas, polidas ou escrachadas, formais ou escatológicas, em papel de carta ou papel de pão, curtas ou longas, de declaração de amor ou de ódio, de descaso ou desespero... sempre são endereçadas a alguém. Esta é para vocês e isso já me basta.

Me despeço de vocês e desta carta com a pena de quem se despede de alguém querido, sabendo que com ele dividiu partes de sua vida e que, independente das cartas que deixaram de trocar no decorrer de suas vidas, entendem que o laço que os une é invisível, porém concreto.

Até breve.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Sombras

Ando cansado. Cansado de toda essa mentira que todos fingem não ver. Cansado desta herança que fui obrigado a receber e que finjo aceitar para que também me aceitem e então reguem meus pés com elogios febris, farrapos de um egocentrismo que me enjoa. Ando cansado dessa vaidade estúpida e emprumada que se disfarça de modéstia porque já não cabe em si mesma e ao transbordar respinga sobre os outros mascarada de um reconhecimento que não existe senão pela expectativa da reciprocidade, o que acaba mantendo todos no mesmo patamar de presunção e arrogância.
Estou cansado de tanta regra e rigor e preconceito e repressão, de tanta discussão inútil, de toda essa retórica infindável que não leva a nada além de uma falsa idéia de justiça e igualdade. Todas as respostas não passam de contradições Abstrações, o nada, palpites, o páreo na raia, sempre seguido de um coro de ignorância que diz amém. Falo de pessoas, de todas, sem esquecer que também estou subjugado a essa condição. Incondicionalmente humano me sinto frustrado. Nos usamos como baús onde depositamos nossos fracassos e esterilidade. Baús sem rótulo que, algumas vezes, numa mistura de desespero e esperança, acabamos abrindo para, no fim ou no fundo, nos decepcionarmos um pouco mais. Falo de pessoas cheias de perfeição, todas covardes na verdade, escondendo umas das outras seu lado mundano e censurável, tentando convencer a todos e a si mesmas de que são especiais, até imprescindíveis. Todas hipócritas. Não vou ser uma delas. Quero que o mundo mem veja como me sinto, um homem que não entende nada, que acorda todos os dias porque não há mais nada a fazer.
Vejo todos desesperados, correndo atrás de suas indulgências, preenchendo-se com o que não vem de sua essência. Essência que à primeira vista pode não parecer mas que acaba sugerindo diferenças. Não vou ser mais um deles, não quero o modelo pronto. Ainda não tenho minhas respostas mas as dos outros não me servem.
Ando cansado porque a vida me tirou do rosto o sorriso, me empurrou lágrimas olhos afora, me cortou de rugas a tez. E não sou velho, não, não sou mas me sinto morto. Apesar de tudo tenho esperanças porque me lembro que não fui sempre sombras. Me lembro de um tempo em que eu tinha as respostas.

Rio, 1992.
chega de andar às soltas
como um cão a lamber sujeiras
dos sapatos alheios

cada um tem nos pés
a sujeira que deseja

chega de andar às voltas
sem dizer o que impera
em mim quando enfio o dedo
na boca da moça feia

ela quer seu próprio dedo

chega de querer que sejamos
o que sonhamos
sonhar é afastar-se dos planos
somos o que somos: desenganos

Perdidos na selva de pedra

Em complemento e resposta a http://entreosimeonao.blogspot.com/

Era uma vez uma menina. Não. Há muito não era mais uma menina. Ainda que não sentisse dessa forma, já era uma mulher. E era daquelas fortes em corpo frágil, daquelas determinadas, cheia de vida, de planos e de ilusões. Era uma menina mulher, como tantas outras meninas mulheres, ou só meninas ou só mulheres que, por uma tolice ou desengano, perdeu a confiança em um dos pilares de sua vida. Ela acreditava que sua estrutura havia sido construída sobre bases sólidas de família, sociedade e indivíduo. E assim sentia com tanta firmeza que seguia, mesmo que passasse por intempéries, caminhos tortuosos ou abalos.

Talvez por excesso de romantismo, sofreu um choque de realidade, essa despida e cruel, a sorrir de escárnio para ela. Esse choque tinha um nome e uma forma grotesca. Tinha um tom de voz grave, até grosseiro. Tinha forma de gente, mas de gente má, com pernas, braços, olhos, boca e ouvidos maus. Acredita-se até que um dia tenha tido um bom coração. Um coração que agora bate num compasso ruim. É inacreditável que essa figura, como tantas outras figuras com formas semelhantes que perambulam por aí, pertença ao nosso mundo, ao mundo da menina mulher, ao meu mundo. Como essa mulher que em um dia específico chorou como uma criança, eu menina, hoje, também choro, ainda que mais contida e conformada.

Retomando o romantismo, esse que nos dias de hoje anda deveras esquecido. Talvez nas linhas de um livro antigo empoeirado ou nos corações ingênuos de jovens apaixonados. Decerto na memória de anciãos enternecidos e sem amargura ou na expectativa das mães de primeira viagem. Nem sei. O que sei é que andamos embrutecidos. E essa brutalidade advém de muitas fontes. Do excesso de trabalho, da falta de cordialidade e de delicadeza, da violência urbana, da inoperância, do desassossego, do desconforto, da intolerância, da intransigência, da aspereza das línguas, dos desafetos, de toda uma gama de situações que nos humilha diariamente.

Estamos fartos. E mesmo fartos, não encontramos forças para erguer os olhos e a cabeça. O que a figura grotesca quis e ainda quer é que andemos em fila, cabisbaixos, infelizes, sem ideais e posturas definidas. O que a figura grotesca quer é te coagir, é fazer você se retratar por ser mais capaz, mais inteligente e mais humano. Ele quer te maltratar e fazer você pedir desculpas pelo desacato. Ele quer mandar absurdos e fazer você obedecer. Ele não quer diálogo, não quer te proteger, não quer saber quem você é, não quer te ajudar. Ele quer submissão, identificação e retratação. Ele quer te autuar, ele quer te prender, ele quer te ver pelas costas. Tudo isso porque você pensou um dia que quando precisasse ele estaria a postos para te auxiliar, cumprindo o que manda a sua função. Mas não nos enganemos. A função dele nunca foi essa. Há muitos anos o mundo está pelo avesso e pelo avesso estamos nós, mocinho virando bandido, bandido virando herói.

Mais uma vez penso na menina mulher chorando. Quais são seus sonhos? A que ela aspira? A que se dedica? Será que depois do choque ainda deseja, ainda sorri?
Não quero pensar em dar o troco, em pagar na mesma moeda. Isso eu deixo aos imundos, que com as mãos sujas, empesteiam a alma e as ruas por onde passam. Se tenho que pagar, o farei com hombridade, pois apesar do pilar da sociedade ter falhado comigo, eu ainda acredito no indivíduo e na família.

Mesmo manca, sobreviverei.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Eu sei, eu sei...

Esta carta segue em duplicata.

Para Alice e Bailarina,

Escrevi este poema faz muito tempo... e ele já era para vocês...


Eu não estive aí naquela vez
Você também não veio quando quis
A gente sabe que não é por mal
Viver é cada dia mais veloz
Há muito já não ouço a sua voz
Que deve ter mudado, eu já nem sei
Se a cor do seu cabelo agora tem
Mais grave ainda ou o mesmo velho tom
Talvez eu reconheça pelo olhar
Se a gente se encontrar e sem querer
Trocar umas palavras na estação
De uma linha futura do metrô
Com nossos netos pegos pelas mãos
Vou esquecer e você vai lembrar
Daquele ano em que, no reveillon
Nos encontramos lá na beira-mar
E eu vou falar daquele carnaval
Que na verdade ainda não passou
E vamos rir de novo pra valer
A gente, que se via todo dia
E ria junto até sem ter razão
Vai seguir, cada um pro seu lugar
Pela calçada larga, quase hostil
Numa quinta qualquer do mês de abril
Se o nunca mais não nos interromper
E mesmo se a gente não se abraçar
Que intimidade é coisa que se esvai
Com o tempo, este tremor que tudo rui
Um gesto vai fazer você saber:
Você andou comigo aonde eu fui.

Um beijo duplicado.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Querência

Faroleiro,

A minha urgência é tão grande que ao escrever chego a comer sílabas.
Tenho pressa.
Salto páginas.
Atendo mil telefonemas.
Respondo em monossílabos.
Respiro fundo. Profundo.
Suspiro.
Aspiro.
Raciocino, mas não penso.
Observo o mundo. Escuto histórias. Acho graça de tudo o que é sem graça.

Tudo isso porque ando em busca do descompromisso. Do ponto entre o vivenciar sem a entrega, sem um termo de responsabilidade. Não quero o laço envolvente que me enforca, que me prende. Não quero perguntas nem reclamações. Quero apenas ficar aqui, comigo, mesmo que o aqui não seja aqui, de fato. Quero entender meus pensamentos, avaliar minhas intenções, rever meus valores... sem interferências próximas alheias. Quero impor-me desafios para ultrapassá-los. Quero vingar-me da angústia com as minhas conquistas. Estou farta das manchetes, dos horários, da internet, da TV, do lixo nas mentes e nos estômagos, das crateras nas ruas e nos corações.

Todas as manhãs caminho alguns minutos bem devagar, contando os passos, divagando sobre essas e outras questões. Apesar da urgência que me maltrata quase que o tempo todo, sei que ainda tenho tempo suficiente para refazer esses trajetos.

Até quando? Não sei e, por hora, acho isso bom. Vejo com simpatia o caminhar sem a preocupação do precavido, sem a desconfiança do porvir, sem o medo da queda ou do fracasso. Com ou sem pedras, viver nunca foi fácil. Por isso não almejo a felicidade plena, posto que bem dito “a felicidade nunca é grandiosa”. Simplesmente prezo pela satisfação completa dos meus desejos, mesmo os mais inconstantes, os mais duvidosos, os mais sórdidos e/ou sagrados. Almejo somente por um sentimento de alcance, de capacidade, de honestidade comigo mesma, carregando a certeza de que, indiferente a todos os contratempos, eu tentei ser íntegra com quem eu me importo e, de uma certa maneira, com quem se importa comigo.

Um beijo.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

"A felicidade nunca é grandiosa", disse, e foi como se empurrasse o primeiro dominó da fila de pilares delicados que houvera posto de pé geometricamente organizados de maneira a formar uma linha sinuosa e aparentemente algébrica. Precipitando-se uns sobre os outros numa sequência veloz e misteriosa alardeada pelo retinir que os choques subsequentes produziam qual o som de uma engrenagem de máquina, cairam.
Como uma cascata de fogos que revela um dia dentro da noite todas as perguntas que perseguira olharam-me sorrateiras e brilhantes: luz! e soube que jamais seriam respondidas. "Pois que a felicidade, então, não é apenas uma pausa?" Tentei continuar a ouvi-las mas era tarde "O intervalo entre uma refeição e outra? Comer: rasgar, cortar...", foram ficando cada vez mais distantes suas vozes "triturar, deglutir... aguarde outra fome, Ela virá..." Desandei a monologar em silêncio, esquizofrênico, arremessado a um tempo indistinto mas no espaço profundo onde existia sem que nenhum par de olhos jamais houvesse pousado sobre mim.
Ave dor! Adie-se toda autopiedade! Cancelem todas as indulgências! Eu quero o sortilégio dos pecados, o fogo das profundezas já arde em mim, não há nada a temer! Deixo as máscaras para os anjos (e outros seres do céu) e tomo nas mãos a espada! Dela viverei e, sim, por ela morrerei, tantas mortes quanto forem necessárias para que a Terra esqueça meu sobrenome e engula para sempre os meus gens. Quero mentiras e culpas três vezes ao dia, os fins à frente de tudo. Sob o comando do ego, este pirata, avante! Mandem-me os caçadores, devolverei suas peles. Mandem-me doutores, devolverei-os moribundos. Mandem-me papas, pastores, devolverei-os demônios. Mandem-me menininhas puras, devolverei-as putas. E felizes. Putas felizes e saudáveis... e rosadas e vivas, como flores nas manhãs febris de um janeiro esquecido. Que o mundo despeje à minha porta provisões sem fim de tempestades, tormentas, a presença sombria de temores inúmeráveis, o sentimento implacável de transitoriedade, prescindibilidade, insegurança, dúvidas e interrogações de fogo. Medo, medo, medo... e prazer, todos os desejos satisfeitos... enfim a felicidade...
e então...

"me passa a farinha, por favor"

... o monólogo cessou.

terça-feira, 12 de maio de 2009

laboriosa língua leva-me alto:
ouço com os olhos, falo co'os dedos
mas como houvesse mais do que segredos
a segredar, invento outro salto

não é bastante a letra sobre o prato
pousado à mesa raso, frio e branco
palavra negra feita escrava, presa
à folha de papel, pergunta quando

deseja sequestrar a boca, a voz
montar como um vaqueiro e em seu cruzado
rasgar páginas feitas de caatinga
e declamar espinhos libertados

mas onde ando as ruas são de asfalto
cavalos hoje são feitos de aço
disparam todos, por demais velozes
e eu cavalgo, eu troto, lento e lasso

desejo andar às voltas de mim mesmo
e mergulhar nas águas de outros rios
o meu relógio é este aqui de dentro
abrigo de segundos infinitos
partido tantas vezes e batendo
ainda o Sim, encosta no meu peito,
e escuta: Sim. Sim. Sim...

o mais é nada

Revisão Astronômica

Plutão
Planeta anão
Planeta não

(Por Gabriela)

outra vez

Alice, querida

Foi como quem atravessou um longo túnel que recebi tua mensagem; tanta luz que a claridade incomodou os olhos, mas depois foi festa. Festa de lua cheia com fogueira, cantoria e noite quente... Se tivesse um rio perto, destes de águas calmas, juro que mergulhava. Porque o mar, Alice, o mar é traiçoeiro. Ao mar entreguei meu coração, encantada com o vai-e-vém da maré, quando tudo era só brincadeira de molhar a pontinha dos dedos n'água fria e correr da onda grande. Devo mesmo ter me distraído; só sei que meu coração está alagado. Mas não quero contagiá-la, prefiro ter meu dia aquecido pelas tuas palavras. É bom caminhar outra vez pela praia e respirar ar puro. É bom olhar o horizonte e sentir que a brisa fresca do oceano ainda me causa arrepio. Não sei como viver uma vida morna e, não importa a gravidade dos ferimentos, serei sempre aquela a mergulhar em sonho e ternura.

Me escreva mais.
Escreva mais.

Preciso um pouco da sua força até poder caminhar sozinha outra vez.
um beijo das estrelas.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Lua cheia

Não farei questão de te explicar minha ausência. Ela é autoexplicativa, pura, simples, clara e límpida. Não tentarei devanear sobre minhas incongruências, minhas lástimas e descrenças. Não retornarei ao óbvio, este corriqueiro modo explicativo de todas as coisas de pequena importância. Busco o que apesar de complexo, me pareça ordinário e descomplicado. Busco a novidade de cada dobrar de esquina sem o susto, apenas com o novo gosto de uma aventura. Por tudo isso, que aos olhos alheios parece tão pouca coisa, te apresento minha ausência. Uma ausência branda, quase conformada. Daquela que me paralisou por um longo tempo, que não me despertou ideias nem sentimentos. O que me salvou foi te ver, lua cheia, ainda subindo, luminosa, grande, lá no céu. Senti o raio de uma alegriazinha entrar em mim. Independente do dia, da rua, da poeira, do ruído, das pessoas, da conjuntura, do grito, da discórdia e de tantas outras denominações explicativas vãs, você, lua cheia, me estapeou a cara com um espetáculo de realidade que eu já tinha me esquecido.

- Ei?! Eu ainda existo. Não me desmereça!

E foi subindo aquela ladeira (como fiz muitas outras vezes) que me coloquei fora de tudo aquilo que me atordoava e consegui visualizar o propósito mais distante, porém mais grandioso. O de ser única em meio ao meio homogêneo que vive nas linhas que me margeiam. Logo deixarás de ser cheia e te tornarás minguante e nova. Pode ser que me encontre novamente na mesma rua com a mesma descrença, o mesmo corpo cansado, um pouco curvado pelo peso do mundo, o andar lento quase arrastado... Te peço que, mesmo assim, não canse de me mostrar que ainda existe, que voltou a estar plena e cheia de luz, me ajudando a iluminar além dos pensamentos, a famosa ladeira dos pés calçados cansados.

terça-feira, 5 de maio de 2009