sábado, 31 de janeiro de 2009

Silêncio

Hoje prego o silêncio. O silêncio dos perdedores. O silêncio dos envergonhados. O silêncio dos fracos. Hoje te suplico que não me pergunte, não solicite minha opinião. Quero ficar em silêncio, por favor. Quero poder não escutar a minha voz. Não quero sentir a vibração do ar passando pela garganta e saindo em forma sonora. Apertei o botão de mudo para presentear-me com o meu silêncio. Se a boca falar menos, é possível que a cabeça trabalhe mais. Que assim seja. Amém.
Não fale comigo, não! Não me olhe assim como se esperasse uma resposta. Hoje não posso. Não pergunto e não dou explicações. Simplesmente. Hoje prefiro ficar escutando canções e escrevendo. Mas em extremo silêncio! Apenas concedo permissão aos sentimentos que me golpeiam, às minhas dores musculares de exercícios e excessos, ao cansaço e à preguiça. Hoje faça o favor de não me ligar. Não me convide para nada! Não me dirija palavra. Te tenho apreço, mas quero ficar sozinha. Entenda, só hoje. Em silêncio. Obrigada.

porque hoje é sábado

Estou brochada. No quarto em chamas apenas quero o trago solitário do cigarro que, embora não fume, agora me parece apropriado para a cena entediante em que me encontro. A casa está em silêncio como há muito não se via e da janela me sinto um pouco menos solitária. O silêncio é um abandono. Vejam: de longe vem o carteiro. Decido, então, espiá-lo por detrás da cortina. Espiá-lo é muito mais divertido do que simplesmente acompanhar seus passos descaradamente... Pro vizinho da frente nada, pro outro não pude ver, pra minha caixa há qualquer coisa. Me recuso a descer e verificar a correspondência, pois não sei quem me boicota: o correio ou a carta que simplesmente não foi enviada, nem selada, nem escrita. Então é melhor voltar para a cama e esperar que este sol inconveniente abandone o dia. Não vou sair, pois não consigo sustentar o corpo. Como foi mesmo que ele disse? Deixe-me vasculhar a memória... Ah! Lembrei: lordose emocional. Sim, é isto, é este o diagnóstico. Me sinto um tanto torta por dentro e me mexer daqui ali me custaria uma boa dose de esforço e coragem, coisa que nem sei bem o que é... Pois assim ficarei; absorta na cama, mergulhada no mar alaranjado de luz que invadiu o quarto na tentativa de me expulsar do cativeiro. Tentativa vã, estou brochada e só sei do cigarro, da fumaça e do tédio da última volúpia.

Primeiro andar

É como se estivesse um nível acima, talvez dois ou um pouco mais. Essa medida é incerta e provavelmente equivocada, mas por enquanto vai ser assim. Esse acima não é dos outros, mas de mim mesma. Desse alguém que o outro vê ou acha que vê. Desse alguém que anda, age, come, acorda e dorme de acordo com um norma, uma regra, um manual inventado e estritamente seguido por todos, sem saberem sua real funcionalidade.
Há muito só faço pensar e esse acima, que também pode significar fora ou imune, me cutuca até incomodar. Estar dentro e imaginar-se fora. Estar fora e pedir desperadoramente para entrar. É contraditório, é irracional… é legítimo… sou eu.
Essa provocante dádiva da inconstância do mundo me mantém firme em propósitos fluidos de ficar e ir, ganhar e gastar, guardar sem saber exatamente para que, centrar-me e aventurar-me. Talvez a espera dos sinais para arriscar mais um passo, um salto ou uma queda, sem cessar meus questionamentos.
Por enquanto estou aqui, vivendo os de aqui, saboreando o doce e o amargo de cada fase e tentando não distanciar-me dos que, independente de fisicamente ou não, me ajudam a melhor tolerar o tédio dos dias ruins.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Sentido

No sul derramei tudo quanto tinha
O norte eu não sei por quanto me destes
E o leste avizinha o oeste

Quando o medo te indica a direção

Quando o cisto foi constatado, a primeira reação foi de medo.

Medo da morte préanunciada, da vida interrompida, medo de fechar os olhos, de ser esquecida. Medo de não ter cumprido a missão. Medo de não ter vivido o suficiente, de ter perdido o chão.

Pensei no corte, no ruído do bisturi elétrico triturando a carne. A carne de uma de minhas pequenas tetas. Quanto dela sobraria? Esse medo foi tão violento que não quis contar a ninguém. Vovó não tomou conhecimento. Tios e primos muito menos. Queria resolver tudo sozinha. Queria mostrar força. Quis brigar com o mundo para poder arrumar uma desculpa pra minha solidão. Em nenhum momento pensei em pedir desculpas, em dizer que amava, em buscar o tempo perdido. Talvez porque, no fundo, soubesse que sobreviveria.

A cirurgia transcorreu tranquila. Quando despertei, já com tudo terminado, chorei. Chorei de alívio, chorei de angústia. Chorei por não ter acompanhado aquele momento. Chorei pela falta de controle. Chorei por ter sobrevivido.

Sobrevivi.

No entanto, de tudo fica um resquício, uma lição. Não àquela de sermos bons aos outros, de dar a outra face. Essas sandices que há muito dizem por aí e que nos tornam tolos. A lição que ficou foi a de ser honesta comigo mesma, de fazer valer cada minuto do meu tempo para ampliar a minha felicidade. E me tornando uma pessoa mais feliz talvez abrisse novas possibilidades de felicidade alheia, pois somente quando nos sobra algo é que podemos doar ao outro. O que nos falta não pode ser compartilhado. E o cúmulo da perda de tempo é compartilhar a falta, a ausência.

Entre desesperos e alívios, apesar de carregar uma leve cicatriz física e muitas emocionais, no fim das contas o saldo foi positivo. Agora, com elas que fazem parte de mim, acredito que entendo melhor o sentido da vida, pelo menos o da minha.

Qual é o sentido da sua vida?

Outros carnavais

ela terminou de calçar as sapatilhas e pôs-se de pé. havia pelo menos dez minutos desde que ouvira os primeiros acordes da banda mas, estranhamente, em vez de sentir pressa como nos dias anteriores, ficou ali parada, em frente ao espelho, olhando a fantasia que em poucas horas estaria velha. Dias atrás seus olhos brilhavam enquanto desembrulhava o presente que a mãe trouxera. Agora já não servia.

Deve ser da pior qualidade - pensou. Onde já se viu uma fantasia deixar a gente dolorida?

Esfregou as palmas das mãos úmidas na barra da saia enquanto se dirigia até a sacada. - Soldadinho! Soldadiiiinho!

O soldado apareceu imediatamente na sacada do apartamento ao lado.
- Você está pronta? Vamos?

- Estou, mas... eu não sei. Acho que hoje não vou.

- Mas... mas hoje é a despedida do carnaval; a banda vai tocar as músicas mais belas. E também, amanhã eu volto pra casa da minha madrinha e só venho no Natal. Aconteceu alguma coisa?

- Não... é que eu não tô me sentindo bem.

- Você tá doente, bailarina?

- Não! Eu só tô... ah, não sei... Tô cansada. A gente já foi na pracinha quatro dias e a banda vai repetir as músicas que já tocou. Todos os anos você passa o carnaval aqui e ainda não viu que todos os carnavais são iguais?

- Mas a gente tinha combinado que hoje eu ia dizer aquilo, lembra? A gente combinou.

- Tá, tá bom, garoto. Mas eu vou ficar só um pouco. Volto para o almoço. Vou avisar a mamãe.

- Vou chamar o elevador.

À medida que o som da banda ia ficando mais vibrante e luminoso, o caminho parecia esticar-se sob seus pés. Quando chegaram na praça, escolheram um banco do lado oposto ao do coreto em que a banda executava suas marchinhas. Sentaram-se em silêncio.
Ele olhava para o chão quando mergulhou no verso que falava de saudade. Ela olhava para os mascarados e se perguntava: como seriam seus rostos?

- E então?

- O que?

- Você acha que, bom, aquilo que a gente combinou.

- O que é, garoto? - indagou impaciente com o olhar ainda perdido em seus questionamentos.

E enquanto outra pergunta girava na cabeça dela, um palhaço veio em sua direção, sem dizer nada tirou do rosto a máscara, fez-lhe uma reverência e sumiu em meio às fantasias

- O quê? - repetiu ela já sem saber sobre o que falavam.

- A surpresa que eu ia dizer.

Ela sentiu a roupa apertar-lhe o peito.

- Ah, você sempre promete que vai dizer mas nunca diz. Olha, é melhor eu ir, a mamãe disse pra eu não demorar. Você vem no natal, não vem? Então. Fica pro natal, tá bom? Você vem comigo?

- Vou.

- Então vamos.

Ele enfiou a mão no bolso e apertou o pequeno pedaço de papel preparado para o caso de um branco repentino. No papel, uma quadra trabalhada desde o natal passado aguardava seu destino:

"Quando abriguei num abraço
Teu peito em meu peito aprendiz
No meu bem-querer se fez
No teu, não sei o que fiz"

Alguns passos adiante o soldadinho tinha os bolsos vazios e a fantasia da bailarina estava manchada.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Fevereiro

É-feito carnaval: 3 doses de folia e uma ressaca cinza pelo excesso de confete e serpentina. Ele me escreveu um poema de amor bonito e triste: Parecia o baile de uma vida passada animado pela orquestra desafinada dos músicos de gravata-borboleta no verão. O palhaço flertando com a bailarina do soldadinho de chumbo - todo ano a mesma coisa: um quebra-nozes, uma quarta-feira de cinzas! O palhaço, a bailarina e o soldadinho: a ciranda do poeta que eu nunca li mas sei de ouvir dizer. Ele disse assim: Doutor, e se não passar? Na rua a multidão atrás da banda, eu atrás da multidão na rua. Passa, uma hora passa meu filho e não vai ser nada além do retrato desbotado perdido na gaveta emperrada do armário de quinquilharias. A banda, a multidão e a rua. Olho pra cima e me vejo velhinha acenando da sacada do oitavo andar da Travessa. Minha rua chama assim: Travessa. A banda toca o poema bonito e triste que ele me escreveu depois da consulta, mas o refrão é tão embaralhado que eu na varanda velhinha não escuto o verso mais importante e fico a sorrir e a acenar, sem entender a proposta de amor feita pra mim na rua atrás da multidão da banda de borboletas cantadoras que um dia eu segui sem saber que eram meus o verso, o poema e o soldadinho. Olho pro alto e me vejo velhinha acenando da varanda e volto a rodopiar na sapatilha de ponta metade quebra-nozes metade quarta-feira de cinzas: o amor É-feito carnaval, a bailarina e o palhaço no porta-retrato empoeirado, o soldadinho e o poema que eu nunca soube que era meu.

No ônibus

Porra, tô sonhando com o dia que vai chegar um telegrama lá em casa... da PGE. Quem sabe até o fim do ano eu tô saindo daqui.

Eu saio antes.

Duvido. Tu não vai encontrar um salário igual a esse lá fora. E como eu sei que tu é pão-dura pra cacete, vai ficar aí... juntando dinheiro pra ir a Madrid. Rss.

Vou casar - ela disse.

Fala sério!

É. A gente se falou outro dia. Ele me liga de vez em quando.

Quando?

Anteontem.

Não, porra, quando vai ser o casório?

Ah, não marcamos ainda... mas tô pensando em outubro.

Ãhã...

Sério, sérinho, cara. Outubro.

Verdade? Você gosta muito dele, né?

Não, né aquele não, é outro. Mas também gosto desse.

Ân. Ele te ligou?

Pois é, me ligou e a gente falando de várias paradas, e ele perguntou quando eu ia pra lá de novo e tal aí falei que quando fosse era pra ficar. Sabe aquela letra meio de brincadeira mas que é séria, sabe?

Sei...

Aí ele disse: "Vem", tipo, eu te dou uma cobertura, sabe?

Âhã, uma cobertura.

Pô, qual garantia ele pode me dar?! Cara, como é que ele fala assim, "Vem", e pronto?! Tava zoando mas naquele esquema de falar sério, sabe? Eu fiquei meio bolada aí comecei a zoar também. Disse que tinha que ser no contrato. "Garante mermo? Totalmente. Óh que eu vou, hein... Pode vir. Vou mermo." E a gente foi acertando os termos do contrato. Muito engraçado, cara, a gente ria muito.

E aí?

Ah, ele ficou de mandar por email os termos que a gente acertou, então acho que deve ser em outubro.

Mas e o outro? Tu não gosta do outro?

Ah, o outro é aquela coisa, sabe, de ficar sonhando com o impossível, sabe? O cara não gosta de mim, quê que eu posso fazer? É platônico, pronto. No final acaba servindo pra você curtir e lembrar. Esse não, esse é diferente, é um cara super tranquilo, curte ver um filme comendo pipoca, sabe? Curte ir a um museu, é um cara caseiro, até cozinha. Parceiro legal, divide as tarefas. A gente até já fez um esboço da divisão das tarefas. Pô, o cara é dez.

E o sexo?

Ah, no sexo é meio francês. Mas pô, ah, tá bom.

Eu acho que eu saio antes.

Sai nada, tô te falando, tu num tá levando fé.

Vamo nessa?

Vambora, muleque!

Falou, gatona, até amanhã.

Valeu, até amanhã.

Ella que casar

Ella quer casar e disse: se você me chamar eu vou. Eu chamo, Ella ri: Pede contrato. Ella quer casar com garantia de amor a longo prazo! Ella quer casar com papel timbrado tinta cor de aurora sol de Nantes mar vermelho vivo e flocos de neve fresca: Ufa! Sim, aceito! Ella quer casar e faz as malas. Ella quer casar e fecha a porta. Ella quer casar e pede a conta: Desistiu? Não, se você me chamar eu vou. Eu chamo, Ella ri: coloca aí com sua própria letra em doze linhas de papel sulfite branco parágrafo único justificado e negrito que em nosso amor há de ter música tom maior e fotografia preta-e-branca tamanho 10x15 quadro de alumínio brilhante. Ufa! Sim, aceito. Ella quer casar e vai ao cinema. Ella quer casar e escolhe o jantar. Ella quer casar e perde a hora! Desistiu? Não, se você me chamar eu vou. Eu chamo, Ella ri. Ella quer casar...Comigo.

diágnosis

De repente a vida em suspenso
O corpo suspenso na cama
Os olhos suspensos no ar

Miram a roupa de festa
num cabide do guarda-roupas
Quantas vezes a usou?
Tão poucas...

De repente o medo de mais
Mas... e se não for fatal?
Como seguir, viver, trocar
de roupa, de cama, de olhar?

E se não for mais nada?
e se o doutor disser: "vá para casa rapaz...
e tente parar de amar... o espírito se adoenta
de tanto querer se dar... vá para casa, rapaz...
viver é não se importar"

?

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Caminho Cabeçaoca (?) – Pasta Esquecimento/arquivomorto

Vamos por partes. Por onde começar? Isto é sempre um dilema. Eu quero escrever, quero mesmo. Esbarro na dificuldade de iniciar um assunto. Temas desinteressantes. Falta criatividade, vocabulário... As palavras estão mortas, não têm nenhum sentido. O coração está cheio. A cabeça, vazia. É isso: cabeça oca, cabeça de vento. Penso em temas super interessantes. Logo, perco o interesse. Fecho a caixa de texto.

- Pensamentos fugidios, por que se escondem?

Concentração. Isto falta também. E muito! Talento? Pois, também.

- Ai, penso demais! Escrevo de menos...

Abro a caixa de texto.

Penso tanto que me afogo em fogo e brasa. Labareda lambe tudo por dentro. Queima até o que não tem. E com tudo dentro queimado, não consigo escrever. Só fica a marca do que havia ou do que começava a existir. Desintegrou-se. Perdeu-se por aí. Perdi. Transformou-se em pó, virou arquivo do esquecimento. Quero compartilhar a pasta do esquecimento. Talvez fazendo uma busca avançada ainda se encontre um arquivo não corrompido.

- Faça uma busca comigo?

UMIDADES PLÚMBEAS E PENUMBRAS ÚRICAS

insônias recolhidas numa
coleção miniatura de neóns piscam
obrigatoriamente
pela janela nua
verdes
fluxo farto a jorrar do gesto de ampliar os vícios intimamente, a dor mais-que-desejada cobre tudo de um estar mudo lancinante
odores acéticos biologicamente destilados enovelam-se à bruma estéril de ares estacionados à volta da pele há muito imberbe
vontade de não ser, de não estar ali, preenchida toda pelo engano:
morrendo não se morre

morre-se matando

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

quarto escuro

Minha indignação é bruta: quer pegar o outro pelos cabelos e arrastá-lo. Quer dizer todas as verdades dissimuladas, quer xingá-lo. Quer xingá-lo muito, quer gritar ofensas em vários idiomas. Quer abandonar o barco, quer marcar gol contra, quer tirar as cartas da mesa, quer contar o final do filme. Minha indignação é bruta, ora. Quer quebrar a guitarra, tirar a dançarina do palco na marra, quer espatifar a garrafa no balcão, quer derramar o leite, a cerveja, a vodka, o whisky. Minha indignação quer derramar tudo! Queimar tudo! Esquecer tudo! Quer rasgar os livros do Saramago, quer arranhar os discos dos Beatles, quer rabiscar o quadro da Monalisa. Minha indgnação é bruta, já disse. Quer especular na bolsa, quer flertar com a mulher do próximo, quer roubar os donativos da missa, quer tacar pedra no telhado dos outros, do outro, no seu... Minha indignação é bruta e feia. Tão feia que nem sai de casa.